Endividamentos virtuosos?
Os endividamentos podem ser ou não virtuosos. Em busca das virtudes, podemos
decompor em três grupos os devedores: o setor público, as empresas e as
famílias. É fácil entender que, na trama de funcionamento de uma economia
complexa, são múltiplas as relações de débito-crédito entre seus integrantes.
Na perspectiva do devedor, ele é responsável pela quitação da dívida, segundo
as condições acordadas em termos de juros, parcelas de quitação e prazos. Na
perspectiva do credor, ele é proprietário de um item de riqueza na magnitude do
seu empréstimo. A dívida depende de o devedor honrá-la e, quase sempre, há
alguma garantia adicional que reforça a "confiança" do credor: fianças,
hipotecas e cauções.
Vejamos relações de débito-crédito virtuosas. A dívida do setor público é
geralmente constituída de uma componente de títulos de dívida do Tesouro e
restos a pagar. A receita do Tesouro é constituída por variados impostos cuja
arrecadação reflete o desempenho da economia. Haverá virtude se for para
financiar investimentos públicos e/ou gastos sociais. O investimento público
predominante em infraestrutura energética, logística e de comunicações tem o
mérito de estimular o investimento das empresas; a economia cresce, criam-se
novas atividades, empregos e aumentam os salários e rendas de capital - logo,
eleva a arrecadação. O aumento da atividade e do crescimento das forças
produtivas foi estimulado pela iniciativa pública e o pagamento do serviço da
dívida será feito com o aumento da arrecadação fiscal. Gastos sociais que
protejam e aperfeiçoem a população têm o duplo mérito de melhorar a qualidade
de vida e qualificar os nacionais em suas múltiplas dimensões.
O endividamento das empresas é virtuoso quando permite a normalidade do
processo produtivo e/ou a ampliação ou aperfeiçoamento da capacidade produtiva
de bens e de serviços. Normalmente, se a empresa se endividar e corretamente
obtiver lucros de suas atividades, poderá quitar os empréstimos, notadamente
aqueles contraídos para a ampliação da capacidade produtiva e aperfeiçoamento
tecnológico de processos e produtos em sua atividade. Tal como no endividamento
público supracitado, gerará encomendas nos setores que estão ligados aos
investimentos realizados.
A política monetária vê na ampliação do crescimento algo que estimula o
processo inflacionário
Finalmente, a família pode se endividar comprando a casa própria e, nesse caso,
fora a qualidade de vida, obterá a redução de gastos com aluguéis e,
provavelmente, no futuro poderá vir a ter um ganho patrimonial. Em tese, é
igualmente meritória a dívida ligada à qualificação profissional. O trabalhador
autônomo pode se endividar para comprar os instrumentos de sua atividade, como
o taxista para comprar um veículo; o artesão para ferramentas; a quituteira
ingredientes para fazer doces, etc. O autônomo faz, em escala reduzida, o mesmo
que a empresa que se endivida virtuosamente.
Não é virtuoso o endividamento do setor público para pagar o serviço da dívida.
Quando o juro básico cresce, o montante do serviço da dívida se expande e,
frente ao não crescimento ou ao medíocre desempenho da economia, se expande o
peso da dívida pública. Esse tem sido o caso do Brasil, aonde o Estado
privatizou e permitiu a desnacionalização em massa de setores-chave da economia
brasileira, sem ter reduzido o peso da dívida pública. É extremamente
inquietante saber que o Brasil ocupa o podium mundial de taxas de juros. É
particularmente cruel a entrada de aplicadores estrangeiros e o crescimento das
reservas internacionais do Banco Central. Essa é uma operação perdedora para o
Tesouro nacional, pois paga uma taxa de juros elevada e recebe pelas aplicações
das reservas brasileiras uma remuneração insignificante. Nosso Banco Central
aplica o grosso de suas reservas em obrigações do tesouro americano e, assim
sendo, temos uma sangria financeira.
As empresas brasileiras estão vivendo em uma economia de lento crescimento cuja
retomada tem prazo curto (o conhecido voo de galinha) dado que nossa política
monetária vê na ampliação do crescimento um aquecimento que estimula o processo
inflacionário e eleva os juros para encurtar e desanimar a tomada de crédito.
Qualquer empresário sabe do risco de se endividar para ampliar e melhorar a
produção. Na verdade, o sonho de qualquer empresa brasileira é não ter dívidas
e, pelo contrário, desfrutar de aplicações financeiras saborosas. É péssimo
para o país a empresa que, em última instância, pretende ampliar seu patrimônio
com empréstimos a terceiros, seja adquirindo títulos e dívida pública, seja
emprestando a outras empresas ou a famílias. A empresa, quando desloca seu
olhar da renda e lucros operacionais para pretender a renda não operacional e
os ganhos patrimoniais com especulação financeira, presta um desserviço à
sociedade como um todo. Claro que ela dirá a seu favor que a política
macroeconômica a empurra para essa atitude e que sua sobrevivência como empresa
depende da qualidade de seu patrimônio não produtivo.
A família que se endivida (à exceção da compra da casa própria, qualificação
profissional ou instrumentos de trabalho) comprando objeto de desejo como
automóvel, eletrodoméstico, mobiliário e amplia seus gastos; antecipa um sonho
e assume o ônus das parcelas de dívida, que dependem da estabilidade dos
empregos e rendas familiares. São dívidas para itens que se depreciam, como o
automóvel zero quilômetro que, ao sair da agência já perde 20% de seu valor.
Das formas de endividamento familiar, a mais perversa é operar com cartões de
crédito e lançar mão do cheque especial. Muitas famílias brasileiras se
endividam nessas modalidades com gastos ligados ao cotidiano e pretendem sua
quitação com o 13 salário. Sondagem feita em maio de 2011 pela Confederação
Nacional de Comércio sobre endividamento familiar situou em 64,2% o índice de
famílias brasileira endividadas, que em 2010 era de 58,7%. Das famílias
endividadas, 17,5% se disseram sem "oxigênio". A taxa de juros média subiu nos
cartões de crédito e no cheque especial quase atingiu 200% ao ano.
Foi extremamente veloz o crescimento do endividamento familiar. O nível de
atividade da economia brasileira neste novo milênio esteve calcado nesse
componente. Por exemplo, a população automobilística cresceu 9% ao ano durante
dez anos; houve momentos em que foi possível comprar em 90 prestações. Os
congestionamentos urbanos e as mortes nas rodovias estão ligados a essa
explosão de veículos desacompanhada de melhorias intra e interurbanas.
O consumidor brasileiro que se endivida com leque de juros brutalmente
elevados, é uma figura bem-vinda aos financiadores. Afinal, o brasileiro não
olha o juro embutido e somente considera o tamanho da prestação.
Ser inadimplente é um fantasma para qualquer família, pois o "nome sujo" lhe
veta o acesso aos objetos de desejo. É óbvio que nenhum prestamista (banco ou
empresa) gosta das famílias inadimplentes, a não ser como pretexto para
justificar juros leoninos. Está em processamento o chamado Cadastro Positivo de
Bons Pagadores. Algumas leituras desse cadastro em combinação com a política
monetária podem representar uma ameaça às famílias endividadas, principalmente
àquelas que rolam sua dívida até o 13 salário ou na esperança de algum ganho
ocasional.
O endividamento, no Brasil, não tem sido virtuoso neste novo milênio.
Carlos F. T. M. Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e
ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social - BNDES
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