Páginas

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Da Itália aos EUA: realidade x utopia

Da Itália aos EUA: realidade x utopia
A crise fiscal está aportando no litoral italiano. Nos EUA, o governo declara que ficará sem verbas no início do próximo mês se o teto da dívida não for elevado. Os europeus menos do que os americanos acreditam que inadimplência do setor público é benéfica. Mas europeus importantes compartilham com os republicanos a visão de que há desfechos ainda piores. Para europeus relutantes, a zona do euro não deve ser uma "união baseada em transferências". Para republicanos recalcitrantes, impostos não devem ser aumentados. "Fiat justitia, et pereat mundus" - faça-se a coisa certa, ainda que o mundo pereça - é o lema.A crise fiscal que vemos é um legado de farras de endividamento dos setores público e privado ocidentais nas últimas décadas. Como nos diz o McKinsey Global Institute* em uma atualização do estudo do ano passado sobre o período que se seguiu à bolha de crédito, este é um estágio inicial de um doloroso processo de desalavancagem em diversas economias. "Se a história pode nos servir de guia", diz o relatório de 2010, "devemos esperar muitos anos de redução da dívida em setores específicos de algumas das maiores economias do mundo, e esse processo freará significativamente o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB)". É o que está ocorrendo, com insatisfações em quase toda parte.O vínculo entre as dívidas dos setores público e privado é íntimo. Em alguns países, especialmente a Grécia, o crédito fácil resultou em um aumento do endividamento do setor público. Em outros, especialmente na Itália, esse crédito incentivou os governos a relaxar seu foco em redução da dívida - seu orçamento fiscal primário (antes do pagamento de juros) passou de um excedente de 6% do PIB em 1997, antes de ingressar na união monetária, para 0,6% em 2005. Em outros países, o fim repentino de expansões aceleradas de crédito do setor privado resultou diretamente no colapso das receitas públicas e em surtos nos gastos públicos: os EUA, Reino Unido, Espanha e Irlanda são exemplos disso.As explosões dos déficits fiscais são predominantemente resultado de colapsos na atividade econômica e nas receitas do que de socorro a bancos. Mas a fragilidade fiscal, por seu turno, debilita os bancos, em parte porque estes detêm grandes montantes de dívida pública interna e em parte porque dependem de apoio fiscal. Os setores público e privado estão imbricados. A visão dos falcões republicanos nos EUA e de falcões alemães ou holandeses na Europa, segundo a qual crise tem raiz apenas fiscal é errônea. Crédito fácil acaba em crises fiscais.As evidências, nos EUA, são notáveis. Compare as previsões para os anos fiscais 2010, 2011 e 2012 nos orçamentos presidenciais de 2008 e 2012, o primeiro no governo de George W. Bush, pouco antes da crise, e o segundo no mandato de Barack Obama bem depois dela. Em 2008, o déficit para 2011 foi previsto em meros US$ 54 bilhões (0,3% do PIB). Mas no orçamento de 2012, a previsão foi equivalente a US$ 1,645 trilhão (10,9% do PIB). 58% desse aumento deveu-se à receitas inesperadamente baixas e apenas 42% decorreram de um aumento nos gastos, sendo essas duas mudanças devidas principalmente à crise financeira, e não ao modesto pacote de estímulo (cerca de 6% do PIB).Não é que o enfrentamento da posição fiscal americana seja urgente. Em um período de desalavancagem do setor privado, isso seria útil. Os EUA têm condições de tomar emprestado sob termos fáceis, estando os rendimentos dos títulos com maturação em dez anos próximos de 3%, como alguns não histéricos previam. O problema fiscal é de longo prazo, não imediato. A decisão de não permitir que o governo tome dinheiro emprestado para financiar os programas que o Congresso já chancelou seria insana. Como argumentou o especialista fiscal Bruce Bartlett, a lei que exige aprovação do Congresso para um endividamento adicional pode até ser inconstitucional.No entanto, muitos dos republicanos contrários ao aumento do limite de endividamento americano desejam um calote da dívida. Ou não têm ideia de quão profundo seria o choque, para a economia e a sociedade de seu país, de um repúdio da dívida legalmente contratada por seu Estado, ou se enquadram na categoria de revolucionários utópicos, que ignoram todas as consequências. Na Europa, felizmente, ninguém acredita que calotes sejam bons. Mas a Europa está atada a seu próprio projeto utópico: a moeda única. Assim como os membros do Tea Party odeiam pagar impostos por aqueles que consideram indignos, assim, também, os europeus solventes odeiam transferências aos que consideram irresponsáveis.Infelizmente, como há muito tempo muita gente previu, o que, na ausência da união monetária teria sido uma crise cambial pura e simples, já se transformou, dadas as limitações impostas pela moeda única, em torturante crise fiscal e financeira. Pior, ainda: os spreads dos títulos espanhóis e italianos de dez anos em relação aos "bunds" alemães chegaram a 328 e 296 pontos base, respectivamente.Em economias de crescimento lento, com taxas de câmbio real sobrevalorizadas, esses spreads começam a ficar perigosos. Se eles chegarem a, digamos, 400 pontos base, e assim permaneceram, a taxa de juros real sobre a dívida de longo prazo seria de 5%. Esses países seriam, então, lentamente deslocados de um bom equilíbrio, com uma dívida administrável, para um mau equilíbrio, com uma dívida quase incontrolável. A Itália, com a quarta maior dívida pública do mundo, é provavelmente demasiado grande para ser salva: os próprios italianos devem tomar as decisões decisivas necessárias para restaurar a credibilidade fiscal. Isso, por sua vez, requer tanto um aperto substancial como medidas para incrementar a taxa de crescimento. Será possível administrar esse mix? Apenas com dificuldade, é a resposta.Estes são tempos perigosos. Os EUA podem estar à beira de cometer um dos maiores e menos necessários erros financeiros na história mundial. A zona do euro pode estar à beira de uma crise fiscal e financeira que não apenas destruirá a solvência de importantes países como até mesmo a união monetária e, na pior das hipóteses, grande parte do projeto europeu. Estes tempos exigem sabedoria e coragem dos responsáveis por nossos problemas. Nos EUA, os utopistas de direita estão tentando destruir o Estado que emergiu da década de 1930 e da Segunda Guerra Mundial. Na Europa, os políticos estão lidando com o legado de um projeto utópico que exige um grau de solidariedade que seus povos não sentem. Qual será o desfecho desses confrontos entre utopia e realidade? No fim de agosto, quando retornar de minhas férias, poderemos conhecer ao menos algumas das respostas. * Debt and Deleveraging (update) Dívida e desalavancagem (atualização): www.mckinsey.com/mgi Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT

Nenhum comentário:

Postar um comentário