O alimento e a guerra cambial
Nos acostumamos por gerações com a comida mais barata. Desde o boom de
commodities de 1973/74 (que ainda que frequentemente esquecido incluiu tanto o
petróleo como os alimentos) até anos recentes, o preço mundial de commodities
alimentícias em dólares apresentou uma forte tendência declinante - tanto se
deflacionado pelo preço unitário global de manufaturas, como pelo Indice de
Preços ao Consumidor (CPI) dos EUA (que inclui o custo de bens de serviço),
como mostra o gráfico abaixo. Deflacionado por este último, o preço relativo da
alimentação caiu cerca de 80%.
Relativamente a outras commodities, o preço das commodities alimentícias é hoje
dez vezes menor do que o petróleo em 1960, cerca da metade do preço de metais
(como o ferro e o cobre), e também inferior a commodities agrícolas não
alimentícias como o algodão e outros. Face a um século atrás, também pagamos
relativamente menos pelo alimento.
Tal tendência a reversão de preços relativos começou em 2003/2004, como mostram
as linhas pontilhadas no gráfico. Embora de magnitude ainda modesta comparada a
episódios de reversão nos últimos cem anos, é interessante observar que a crise
financeira global de 2008-09 não interrompeu tal processo.
Evidência econométrica sugere que isso deve continuar por algum tempo, já que o
preço mundial de commodities alimentícias é sensível à baixa da taxa de juros
de curto prazo nos países avançados (que deverá continuar por algum tempo) e à
recuperação do produto mundial. Com estoques mundiais hoje abaixo de sua média
histórica, essa sensibilidade é exacerbada.
Dada a natureza insubstituível da comida, tal inflação mais alta no mundo
emergente resultará em pressões salariais mais fortes, reforçando a apreciação
cambial resultante do choque inicial. Nesses países, os salários já crescem a
uma taxa na casa dos dois dígitos.
Embora haja bastante discussão sobre o efeito inflacionário dos choques de
commodities e em que medida a política monetária deva ou não acomodá-los, uma
dimensão internacional do problema tem sido um tanto negligenciada - a saber, o
vínculo entre a inflação mundial de comida e a "guerra cambial".
A conexão advém de duas peculiaridades da comida vis-à-vis outros bens: é muito
pouco substituível, e os gastos com comida em proporção do consumo total do
cidadão médio variam muito internacionalmente: nos países avançados é
tipicamente entre 10% e 15%, enquanto nos países emergentes é aproximadamente o
dobro, chegando algumas vezes a 40% ou 50%. Isso leva a que um aumento do preço
internacional da comida aumenta automaticamente a inflação no mundo emergente
mais que no mundo avançado.
Tudo o mais constante, a taxa de câmbio real do mundo emergente se valoriza.
Dada a natureza insubstituível da comida, tal inflação mais alta no mundo
emergente resultará em pressões salariais mais fortes, reforçando a apreciação
cambial resultante do choque inicial. Não é, portanto, surpreendente que em
alguns países emergentes, os salários já cresçam a uma taxa na casa dos dois
dígitos enquanto em países avançados estejam basicamente estáveis.
Na medida em que tais choques de comida são muito persistentes e a tendência à
subida do preço relativo da comida continue (como historicamente observado),
tal apreciação real será inexorável se nada for feito. E será tanto mais aguda
quanto maior forem os mecanismos de indexação formal e/ou informal, pois esses
generalizam a pressão inflacionária e aumentam a sua persistência.
Os instrumentos clássicos de política monetária não são os mais apropriados a
lidar com pressões persistentes de apreciação da taxa de cambio real. Afinal de
contas, a política monetária pode e deve controlar para que esse ajuste de
preços relativos se faça num ambiente de baixa inflação, mas tem muito pouco ou
nenhum controle da taxa de câmbio real no médio e longo prazo. No linguajar
macroeconomês, trata-se da chamada neutralidade de longo prazo da política
monetária.
Se, na visão dos gestores de política econômica, a apreciação real e a
consequente perda de competitividade dos setores não produtores de commodities
(como a manufatura e certos serviços) geram um sério problema para o respectivo
país, cabe atacá-lo por meio da política fiscal e reformas estruturais que
cortem radicalmente o custo naqueles setores. Isso inclui não só medidas de
desoneração da folha de salários, mas também uma redução da despesa real do
governo, e em particular da despesa corrente (em contraste com gastos de
capital em infraestrutura) na medida em que tais despesas pressionam a demanda
agregada e o preço dos bens domésticos (non tradeables). E, obviamente,
mecanismos de indexação formal ou informal de salários só complicam essa
batalha.
Em alguns países emergentes, o controle fiscal já é feito, seja por meio de
regras que gerem um maior superávit primário em proporção à subida do preço de
commodities, seja por meio da redução real de gastos correntes discricionários.
Isso é ainda mais imperativo em países onde a taxa de cambio nominal
apreciou-se fortemente.
A eliminação de fórmulas, implícitas ou explícitas, de reajustes salariais
indexados foi um importante ganho anti-inflacionário do passado,
particularmente na América Latina; revertê-lo significa retroceder na história.
Num momento que a inflação mundial de comida erode a competitividade de países
como o nosso, quase que por piloto automático, não parece ser hora de deixar o
voo correr solto.
Luis A.V. Catão é economista do Departamento de Hemisfério Ocidental do Fundo
Monetário Internacional (FMI).
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