Sobre risco cambial, besouros e borboletas
É fácil ser otimista sobre a evolução da macroeconomia brasileira no curto
prazo. A combinação de juros elevados, taxa de câmbio praticamente estabilizada
e menor pressão nos preços internacionais de alimentos e petróleo, reduzirá a
inflação em 12 meses do IPCA já a partir de outubro próximo. A inflação de 2012
deverá ficar abaixo de 5%, com a economia mantendo o crescimento na faixa de 4%
a 4,5%.
Será, porém, uma vitória de Pirro já que em algum momento ocorrerá uma
inevitável correção para cima na cotação do dólar, com alta probabilidade de se
transformar numa traumática "parada súbita". A pressão desse ajuste vai trazer
de volta a inflação e exigir nova elevação da taxa Selic. Se for um ajuste
súbito, haverá também uma freada no crescimento.
A atual configuração da política econômica brasileira é insustentável no longo
prazo. Forte crescimento com apreciação cambial no contexto de uma economia
mundial com expansão moderada produz inexorável deterioração do balanço de
pagamentos. Em algum momento, teremos que interromper o crescimento e ajustar a
taxa de câmbio. Com o agravante de que, a despeito do aumento do déficit em
transações correntes, a acumulação de reservas internacionais também ganhou
velocidade vertiginosa, algo como US$ 100 bilhões por ano. Isso configura uma
autêntica "bolha especulativa" que poderá ter graves consequências quando
estourar.
"A bolha de acumulação de reservas vai estourar em algum momento entre 2013 e
2015."
O Brasil, ao contrário da China, não acumula reservas internacionais porque
produz superávit nas transações de bens e serviços com o exterior. No nosso
caso, a acumulação de reservas resulta apenas do ingresso de capital
estrangeiro e, nos últimos doze meses, apenas 20% desse movimento consistiu em
aporte direto de capital para empresas, isto é, em ingresso com uma motivação
nitidamente de longo prazo. O resto, incluindo aplicações em ações, renda fixa
e os empréstimos intercompanhias (que o Banco Central imprecisamente classifica
como investimento direto) são certamente ingressos com motivação mais de curto
prazo e de natureza bem mais volátil.
O que faz esse capital estrangeiro ter tanta gana de vir para o Brasil? O Banco
Central anuncia oficialmente que o regime cambial é de livre flutuação e que só
opera no mercado de câmbio para "reduzir a volatilidade". Na prática, nas
condições atuais, isso significa que a cotação do dólar fica estável ou realiza
um movimento de queda gradual. O que temos então é um verdadeiro paraíso para o
especulador estrangeiro que pode facilmente se beneficiar do diferencial nas
taxas de juros. Não é uma possibilidade de arbitragem perfeita, como ficou
claro em 2008, mas é uma bela oportunidade de ganho com risco reduzido. Como o
Brasil ainda não aboliu o forte efeito motivador da possibilidade de arbitragem
(mesmo imperfeita) sobre o movimento de capitais, o resultado é o ingresso
maciço que estamos observando.
Esse movimento adquire todas as características de uma bolha especulativa
quando começa a gerar um mecanismo de retroalimentação. Quanto mais capital
entra tanto maior é a pressão de baixa sobre a cotação do dólar e tanto maior a
garantia de que o Banco Central vai continuar aplicando sua política de redução
da volatilidade para produzir estabilidade ou apreciação gradual. Isto, por sua
vez, torna ainda mais atraente o ingresso de capital para arbitrar juros. Na
realidade para o especulador a apreciação em si não é importante. Seu ganho
principal resulta do diferencial entre as taxas de juros e para isso só é
necessário que não ocorra uma desvalorização significativa da taxa de câmbio.
O resultado é a anomalia de um mercado cambial em que tipicamente apenas o
Banco Central e os importadores atuam na ponta compradora, com todos os demais
operam como vendedores. Isso não resulta apenas da atuação de especuladores
profissionais. Considere, por exemplo, o processo de decisão do diretor
financeiro de uma grande multinacional que administra o caixa da empresa dentro
de uma perspectiva global. Naturalmente vai querer ficar credor no Brasil,
ganhando remuneração superior a 12% ao ano e devedor em outros países com custo
financeiro muito menor. Isto significa que vai operar como vendedor no mercado
cambial brasileiro. Curiosamente esse executivo vai ficar ofendido se lhe
disserem que está operando como especulador: afinal, para ele, está apenas
fazendo o seu trabalho de administração do caixa. O espaço aqui não me permite
citar diversos outros casos concretos que confirmam a natureza especulativa da
bolha que se desenvolve agora no nosso mercado de câmbio. Todo mundo enxerga
uma possibilidade de ganho aparentemente fácil e quer tirar uma casquinha.
"Controlar a entrada de capital pode simplesmente antecipar o momento de
ruptura da bolha."
Bolhas especulativas são fenômenos complexos que não entendemos bem, mas com
certeza sabemos que sempre evoluem para o colapso. Nosso palpite é que essa
nossa bolha de acumulação de reservas vai estourar em algum momento entre 2013
e 2015. É impossível saber o momento exato e a sequência exata dos eventos na
ruptura, apenas sabemos que ela se tornará mais provável quando o mercado de
câmbio transitar da atual posição de excesso permanente de oferta para uma
posição de equilíbrio ou de excesso de demanda. Isto inevitavelmente vai
resultar da deterioração continuada do déficit no balanço de pagamentos em
transações correntes.
Na ruptura, os primeiros a sair tipicamente são os especuladores profissionais.
A eliminação do excesso de oferta tira o Banco Central do papel de
disciplinador do movimento de apreciação e tende a aumentar a volatilidade do
mercado. O especulador sabe que nosso regime de livre flutuação na prática tem
sido um regime de flutuação amortecida assimétrica, isto é, a atuação do
governo no mercado de câmbio é muito mais decidida para evitar apreciações do
que para evitar depreciações. A maior volatilidade do câmbio torna menos
favorável a relação risco-retorno e induz o especulador a reduzir sua posição
vendida na moeda brasileira. Esse ajuste é muito facilitado pela dimensão do
nosso mercado de derivativos de dólar, que é inusitadamente grande para uma
economia emergente. A grande liquidez desse mercado torna muito fácil travar
qualquer posição vendida em dólar, e isso vale tanto para os especuladores
profissionais como para qualquer empresa ou investidor.
Como em todo colapso de bolha, o movimento pode ser iniciado por um pequeno
grupo de profissionais, mas depois se alastra rapidamente e ganha amplitude e
intensidade. O resultado é uma forte e rápida depreciação da taxa de câmbio.
Idealmente o Banco Central pode tentar administrar esse ajuste, produzindo uma
transição lenta e suave da taxa de câmbio para o novo patamar sustentável de
equilíbrio e dessa forma evitando o "overshooting" característico dos colapsos
de bolha. Para isso terá que operar com determinação e intensidade na ponta
vendedora tanto no mercado de dólar à vista como no mercado de derivativos
através de futuros e swaps. Naturalmente, a venda de dólar num mercado cambial
em movimento de alta produzirá prejuízo para o erário público, mas isso será
mais do que compensado pelos benefícios de se evitar a parada súbita.
De fato uma das poucas coisas que o governo pode fazer agora diante da
perspectiva de um inevitável ajuste cambial no futuro é preparar seus planos de
contingência para uma operação desse tipo, isto é de amortecimento da
desvalorização.
Em particular, tanto o Banco Central como outras áreas mais politizadas do
governo têm que estar psicologicamente preparadas para entregar aos "malditos
especuladores" o botim resultante de suas operações cambiais no país, sendo que
isso poderá significar a perda de um grande e imprevisível volume de reservas
internacionais (metade das reservas, por exemplo?).
É importante entender, porém, que não existem alternativas viáveis de controle
de capitais para escapar de uma bolha que já se instalou e se desenvolve a
pleno vapor. A introdução de controles sobre a entrada de capital, como tem
sido tentado recentemente, apenas bloqueia alguns canais de entrada e
redireciona o movimento para outros canais. Por outro lado uma aplicação muito
ampla desses controles pode simplesmente antecipar o momento de ruptura da
bolha. A alternativa de controles sobre a saída de capital poderá parecer
tentadora quando a bolha começar a estourar, mas ela nunca é eficaz se adotada
em apenas um segmento do mercado. Ou seja, a opção de controle sobre a saída de
capitais é na realidade uma opção pela centralização total do câmbio, o que
seria um lamentável retrocesso na política econômica brasileira.
Será possível promover uma saída ordenada da bolha e um ajuste gradual da taxa
de câmbio? Temos que torcer que sim, mas qualquer operador com experiência em
mercados especulativos provavelmente dirá que não. Ou seja, é bom estar
preparado para um comportamento do mercado de câmbio semelhante ao que ocorreu
em 2008 (ou mesmo 2003), desta vez possivelmente com ainda maior overshooting
em virtude dos grandes montantes envolvidos.
É interessante notar que 2008 foi uma oportunidade perdida para se obter uma
nova configuração sustentável para nossa macroeconomia. A crise mundial
produziu forte desvalorização cambial e o Banco Central reagiu corretamente
baixando a Selic de 13,75% ao final de 2008 para 8,75% em junho de 2009, uma
redução de 5 pontos percentuais. Na realidade, porém, essa redução resultou
muito tímida, principalmente considerando que no mesmo período o banco central
americano também se moveu na mesma direção. Como a taxa do Federal Reserve
(Fed, banco central americano) caiu de 5,25% em meados de 2007 para
praticamente zero ao final de 2008, a redução da Selic foi inferior à do juro
americano.
A cotação do dólar voltou a cair rapidamente e em outubro de 2009 já tinha
voltado para próximo de R$ 1,70, praticamente anulando toda a desvalorização
anterior. A operação correta naquela ocasião teria sido reduzir a taxa Selic
muito mais agressivamente, ainda que ao custo de uma taxa de inflação um pouco
maior num período transitório.
Não é nossa intenção aqui fazer uma crítica à atuação do BC no contexto de
crise internacional de 2008, já que naquele ambiente de incerteza não seria
fácil adotar uma tática de atuação muito diferente de seu padrão tradicional.
Devemos lembrar também que algumas das pré-condições necessárias para uma
redução mais agressiva da taxa de juros não estavam presentes, entre elas a
eliminação do piso imposto pela regra atual de remuneração da caderneta de
poupança. Na realidade, como sugeri no artigo "A Estabilização Incompleta", do
livro Novos Dilemas da Política Econômica (editado por Edmar Bacha e Mônica
Bolle, LTC 2011), o trabalho de construção do arcabouço institucional
necessário para a consolidação da estabilidade ainda está longe de concluído.
Essas considerações nos levam ao que parece ser a questão central. Só vamos ter
uma configuração sustentável de nossa macroeconomia quando a taxa Selic for
compatível com o padrão internacional, admitindo-se um pequeno prêmio de risco.
Isso seria talvez algo como 3% a 4% ao ano agora, e algo como 6% a 7% quando a
taxa de juros do Fed voltar para o patamar de 4% a 5% daqui a alguns anos.
Essas taxas de juros poderiam ser ainda menores com uma meta de inflação menor.
Um nível "normal" de taxa de juros é pré-condição para que possamos adotar uma
verdadeira flutuação cambial, com o governo se abstendo de qualquer
interferência no mercado de câmbio. Só então vamos descobrir qual é realmente a
taxa de câmbio de equilíbrio da nossa economia, e só então o regime de metas de
inflação poderá operar da forma como foi teoricamente desenhado para operar,
produzindo uma trajetória de crescimento econômico sustentável com inflação
controlada.
Para evitar mal entendido quero enfatizar que sou totalmente favorável à ideia
do tripé estabilizador, composto por austeridade fiscal, flutuação cambial e
regime de metas de inflação. As vantagens do tripé, introduzido ainda no
governo FHC, são inequívocas. Sabemos que funciona muito bem nos países
desenvolvidos que o adotam, como Suécia ou Inglaterra.
No Brasil, porém, o tripé estabilizador é meio de mentirinha. Teoricamente
existe flutuação cambial, mas na prática o movimento da taxa de câmbio é
inibido pela intervenção rotineira do Banco Central. Por outro lado, nosso
principal instrumento de política monetária, a taxa Selic, tem impacto muito
reduzido sobre o nível de atividade e a inflação. A austeridade fiscal existe
mais no discurso do que na prática. Ou seja, o regime se apresenta como de
metas de inflação, mas alguns de seus pressupostos básicos não estão presentes.
Um comentário final sobre o título deste artigo. A evolução atual da
macroeconomia brasileira me faz lembrar o voo de um besouro. A primeira vista a
aerodinâmica do besouro não devia permitir que voasse, não obstante ele é capaz
de voos curtos. São voos deselegantes que mais parecem sequências de saltos.
Certamente um besouro não tem a capacidade de voo de uma borboleta. Muitos
analistas quando discutem nossa macroeconomia parecem acreditar que estão
analisando uma borboleta, com toda sua beleza e complexas piruetas. Não se pode
negar que são elegantes e divertidos os debates sobre a delicada calibragem da
taxa Selic, os ciclos de ajuste e relaxamento da política monetária, o papel
das medidas macroprudenciais, a coordenação das políticas monetária e fiscal, o
impacto do "dólar index" sobre a taxa de câmbio real-dólar e tudo mais. Os
analistas parecem esquecer, porém, que as importantes deformidades que ainda
existem em nossa economia nos permitem no máximo pensar em um voo de besouro.
Infelizmente um besouro voador não se transforma automaticamente numa
aerodinâmica borboleta. É fundamental ter em mente que o trabalho de construção
das precondições institucionais para a consolidação da estabilidade ainda está
longe de concluído e, na verdade, avançou muito pouco nos governos petistas.
Isto ficará novamente claro na próxima crise cambial.
O autor agradece os comentários de Edmar Bacha, sem naturalmente implicá-lo em
suas heterodoxias.
Francisco Lopes é sócio principal da consultoria Macrométrica.
Este é o segundo de uma série de artigos sobre a conjuntura econômica atual,
com foco maior nos problemas de câmbio, juros e inflação, feitos por renomados
economistas a pedido do 'Valor'.
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