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quinta-feira, 9 de junho de 2011

A nova desindustrialização

A nova desindustrialização

A estrutura da economia mundial se altera rapidamente desde a virada do século
XX. Países asiáticos assumem cada vez maior participação relativa na produção
global. Sem contabilizar o Japão, o conjunto das economias asiáticas responde
por quase 43% da produção global, enquanto em 1973 representava apenas 16,4%.
Em contrapartida, nações como os Estados Unidos e a Inglaterra, que juntas
respondiam por 26,3% do produto global em 1973, representam atualmente 21,5%.
Essa inversão no sentido da composição da produção mundial sinaliza a
conformação de uma nova Divisão Internacional do Trabalho assentada no
movimento combinado e desigual da desindustrialização do velho centro
manufatureiro global com a industrialização acelerada de países periféricos,
sobretudo asiáticos.
O curso atual do enfraquecimento das antigas economias manufatureiras está
longe de expressar a desindustrialização regressiva verificada no século 19,
quando o avanço na internalização das bases do capitalismo industrial
inicialmente na Inglaterra e, posteriormente, nos Estados Unidos e outros
poucos países, foi acompanhada pelo retrocesso na base produtiva artesanal
existente em outras regiões. Em 1913, por exemplo, a Ásia sem o Japão respondia
por 22,3% da produção global, contra 56,4% em 1820.
Enquanto Europa se desindustrializa, os países periféricos vivem movimento
acelerado de industrialização
A Inglaterra e os Estados Unidos, que, por outro lado, representavam juntos
somente 7% da produção mundial de 1820, passaram a responder por 27,1% no ano
de 1913. Em grande medida, o ciclo de industrialização original e retardatária
na Inglaterra e nos Estados Unidos, respectivamente, se fortaleceu na medida em
que a globalização liberal do século XIX destravou o livre comércio e, com
isso, ocasionou o esvaziamento da base produtiva artesanal em antigas regiões
com elevados excedentes exportadores.
Em síntese, o século XIX possibilitou que o avanço do capitalismo industrial em
alguns poucos países ocorresse simultaneamente ao esvaziamento da
desindustrialização da produção artesanal até então existente. A India, por
exemplo, que era a grande exportadora de produtos têxteis no início do século
XIX (sedas e artesanato), conviveu com a destruição de sua base produtiva
diante do comércio livre com a Inglaterra produtora e exportadora de
manufaturados têxteis oriundos da mecanização (tear mecânico), da logística
ferroviária e da reorganização do trabalho industrial.
Assim, no final do século XIX, três quartos do consumo têxtil indiano eram
abastecidos por importações inglesas. Em compensação, o artesanato foi sendo
substituído pela produção de algodão, juta e índigo. A especialização da
produção de mercadorias primárias não se mostrou suficiente nem mesmo para
oferecer segurança alimentar, considerando-se problemas de fome constatados na
India.
A Inglaterra exportava manufatura e importava matéria-prima e alimentos dos
países sem indústria moderna. Dessa forma, a India, que abandonou sua produção
local para atender ao consumo interno por meio da importação da Inglaterra, não
tinha a garantia de que os ingleses fariam a mesma coisa. Ou seja, a Inglaterra
vendia manufatura para a India, mas não importava o trigo e outras culturas de
subsistência da própria India, pois as adquiria dos Estados Unidos.
Também para os chineses, a liberação dos entraves ao comércio externo, como o
Tratado de Nanquim, em 1842, encerrou a "Guerra do Ópio" em favor dos ingleses.
Com o ingresso do ópio na China, seus efeitos se mostraram desastrosos sobre a
estrutura produtiva total. O mesmo poder-se-ia dizer a respeito da situação do
Ceilão, que, ao aceitar os pressupostos da globalização liberal do século XIX,
perdeu a sua base produtiva artesanal em favor da dependência das importações
manufaturadas em troca da exportação de chás.
Pela globalização neoliberal da virada do século XX, o antigo centro produtivo
mundial tornou-se crescentemente oco, com o esvaziamento do parque
manufatureiro. Indústrias centenárias como siderurgia, têxtil e vestuário,
estaleiros, entre outras, são esvaziadas por força da pujança da produção
manufaturada dos países que rapidamente se industrializam. A defesa da
liberalização comercial nos dias de hoje parte do pressuposto de que o setor
terciário (serviços) poderia ocupar mais satisfatoriamente o espaço vazio
deixado pela desindustrialização. Ainda que o avanço da tecnologia nos serviços
possa ajudar a minorar os problemas das finanças desindustrializantes, o
comércio mundial assentado nos bens manufaturados tende a reorganizar a
produção global em poucas localidades, sobretudo na Ásia.
A relação entre países deficitários e superavitários no comércio global não
revela necessariamente a força da nova Divisão Internacional do Trabalho. Tal
como no século XIX, o Brasil cresceu sua participação relativa na produção
global à taxa média anual de 0,6%, passando de 0,4% para 0,7% entre 1820 e
1913, enquanto a sociedade agrária era atrasada e exportava bens primários. No
período de sua industrialização, o peso crescente da manufatura permitiu que a
presença brasileira na produção global crescesse 2,5% ao ano (de 0,75%, em
1930, para 2,6%, em 1980). O dinamismo do seu mercado interno e a modernização
da sociedade foram seus principais trunfos. Na virada do século XX, a aceitação
da globalização neoliberal fez com que a sua base manufatureira regredisse,
reduzindo a participação relativa na produção global não fosse o aumento da
exportação primária. Na década de 2000, o peso relativo do Brasil no produto
industrial mundial foi de apenas 1,9%, ante 2,9% da década de 1980.
Sem ter passado pela velha desindustrialização do século XIX, o Brasil não está
condenado a ter que participar da nova desindustrialização. O cenário atual de
moeda nacional valorizada, combinada com taxas de juros elevadas, faz avançar a
reprimarização da pauta exportadora e a geração interna de manufatura com alto
conteúdo importado. Com taxa de investimento inferior a 20% do produto,
prevalece a contenção da inovação tecnológica, geralmente suprida pelas compras
externas. Os esforços em educação seguem importantes, ainda que doutores e
mestres em profusão sigam mais ativos na docência do que na pesquisa aplicada
no sistema produtivo.
A negativa à nova desindustrialização requer reafirmar a macroeconomia do
desenvolvimento sustentada pelo maior valor agregado industrial e conhecimento.
A impulsão dos investimentos é estratégica, seja pela agregação de valor às
cadeias produtivas e às exportações, seja pela ampliação da inovação
tecnológica e educacional exigida. Assim, o novo desenvolvimento brasileiro
pode convergir com as estruturas produtiva e ocupacional de qualidade, capazes
de romper com o atraso secular da condição subordinada do Brasil no mundo.
Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea), professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos
Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).

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