Mudou o mundo, o Brasil ou o BC?
Gustavo Loyola
As últimas decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) parecem indicar que
o Banco Central (BC) teria se tornado mais "dovish" quando comparado a sua
atuação anterior na gestão Henrique Meirelles. A mesma percepção permeia os
documentos escritos da instituição, assim como as manifestações verbais de seus
principais dirigentes ao longo de 2010.
Diante disso, cabe indagar quais as razões teriam levado o BC a alterar suas
ações e seu discurso na execução da política monetária. Teria a economia
brasileira mudado estruturalmente, abrindo espaço para uma taxa de juros
"neutra" mais baixa? Seria a conjuntura internacional, onde sobressaem os
riscos deflacionários, a responsável pela atual postura do BC? Ou seria essa
mudança apenas uma consequência da alteração na composição da diretoria da
autoridade monetária?
Obviamente, não é simples a resposta a essas questões, até porque a execução da
política monetária pode estar sendo influenciada simultaneamente por uma
multiplicidade de fatores. Não obstante, parece ser interessante examinar os
meandros do processo que, aparentemente, tem levado o BC a se mostrar menos
avesso ao risco inflacionário do que no passado recente.
Inicialmente, abordemos a questão da taxa de juros "neutra". Como salientado na
literatura econômica, trata-se de um conceito de difícil mensuração prática. Em
linhas gerais, define-se "taxa de juros real neutra" como sendo o nível da taxa
básica de juros que assegura o crescimento não inflacionário da economia,
presentes certas condições estruturais. Há razoável consenso, e dele fazemos
parte, que nos últimos anos os avanços institucionais, a consolidação do regime
de metas para inflação e da credibilidade do BC, a redução do prêmio de risco
soberano e o desenvolvimento do mercado de crédito, entre outros fatores,
conduziram à queda da mencionada taxa de juros "neutra" no Brasil.
Aumentou a probabilidade de o BC ser surpreendido pela trajetória de inflação
em 2011
Porém, há o problema prático de se conhecer exatamente qual é o nível de taxa
real de juros que estaria adequado com o atual estágio dos fundamentos da
economia brasileira. Num exercício econométrico realizado pela Tendências
Consultoria, encontramos um nível em torno de 7% ao ano que, considerada uma
meta de inflação de 4,5%, significaria uma taxa nominal básica ao redor dos
11,5% ao ano. O próprio BC realizou uma pesquisa entre os agentes de mercado
para coletar suas estimativas da taxa de juros "neutra". Seu resultado não se
desvia muito do número estimado pela Tendências. A média das estimativas do
mercado ficou em 6,55% ao ano, com uma mediana de 6,75% ao ano, apresentando a
distribuição de expectativas duas modas: 6,5% e 7% ao ano.
Ora, a taxa Selic está no momento em 10,75% ao ano, o que subtraída a meta de
inflação de 4,5%, (pressupondo que as expectativas tenham convergido para a
meta) resulta em taxa real de juros de 6,25% ao ano, percentual abaixo da média
da pesquisa do BC. E se considerarmos a expectativa de inflação para os
próximos 12 meses, o número é ainda menor, de 5,6% ao ano. Desse modo, parece
razoável inferir que o BC está apostando que a taxa "neutra" é, de fato, abaixo
do que acredita maioria dos agentes de mercado pesquisados.
Porém, outra explicação possível é considerar que a autoridade monetária
entende que a conjuntura desinflacionária internacional (pelo menos nos países
desenvolvidos), aliada ao movimento de depreciação do dólar americano, estaria
se consubstanciando num cenário inflacionário doméstico mais benigno. Nesse
sentido, aliás, na ata da última reunião do Copom, o BC afirma que "permanece
elevada a probabilidade de que se observe alguma influência desinflacionária do
ambiente externo sobre a inflação doméstica".
O problema com essa assertiva é que, não obstante a anemia econômica dos países
desenvolvidos, não há de fato um ambiente desinflacionário quando se trata dos
preços das "commodities", cuja trajetória é volátil e num sentido inverso ao
comportamento do dólar dos EUA. O próprio BC, na referida ata do Copom,
reconhece tal volatilidade, o que recomendaria, a meu ver, maior cautela na
política monetária. Ademais, no contexto de crescente intervenção no mercado
cambial, inclusive com o uso de medidas heterodoxas, não se pode mais contar
como certa a apreciação do real para amortecer as pressões externas dos preços
das "commodities" sobre a inflação doméstica.
Em vista das questões aqui discutidas, a postura mais "dovish" do BC poderia
ser também consequência da mudança da composição do Copom, cujos integrantes
atuais seriam menos avessos ao risco inflacionário do que seus antecessores e,
por isso, mais dispostos a correrem o risco da manutenção dos juros no limiar
inferior do que poderia ser considerada a taxa "neutra". Não estamos,
obviamente, afirmando que o BC tenha deixado de praticar uma política monetária
responsável, nem que haja riscos de descontrole inflacionário no futuro. Porém,
como refletido nas expectativas inflacionárias coletadas na pesquisa "Focus",
aumentou a probabilidade de o BC ser surpreendido pela trajetória de inflação
em 2011, hipótese que demandaria um ajuste maior da taxa básica de juros.
Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV. Ex-presidente do BC, é
sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo.
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