Aonde foi parar a crise dos derivativos?
Há dois anos podíamos perceber a formação de uma tempestade sem precedentes em
Wall Street, centro nervoso do mercado financeiro mundial. Os sinais de
desequilíbrio e de uma catástrofe iminente se intensificavam nos radares dos
especialistas. Finalmente, em setembro de 2008, o impensável aconteceu, veio ao
chão o gigante Lehman Brothers. Junto com ele foram varridos do mapa da elite
financeira, ao menos da maneira como conhecíamos, ícones como: Merrill Lynch,
Washington Mutual, AIG, Bear Stearns, Wachovia, Fannie Mae e Freddie Mac entre
outros.
No Brasil, um dos principais efeitos de tais acontecimentos foi o deslocamento
imediato do mercado de câmbio. O dólar, que seguia por meses com baixíssima
volatilidade, em torno de R$ 1,60, subitamente disparou atingindo o pico de R$
2,50 nos meses subsequentes. Tal desequilíbrio desorganizou, embora
momentaneamente, a lógica das operações de proteção, via derivativos,
realizadas entre empresas e bancos.
Tanto o ambiente de bolsa como o de balcão, onde as negociações são bilaterais,
houve intensa necessidade de ajustes de forma a reduzir o risco de contraparte.
Em bolsa, isso ocorreu via alteração do patamar de ajustes diários; e, em
balcão, via verificações, espécie de ajuste contratual definidos entre os
bancos e seus clientes.
Primeira resolução exigindo o registro das operações é de 1994, muito à frente
do mercado internacional
Algumas grandes empresas haviam avançado muito além das operações de hedge
propriamente ditas e se alavancaram de forma insustentável no novo cenário. Na
esteira do pânico criado pela divulgação dos imensos problemas que enfrentavam
essas empresas, dezenas de outras, menores, passaram a alegar que os contratos
firmados com os bancos em um momento de baixa volatilidade haviam se tornado
inviáveis. Não fosse o movimento firme e determinado do Banco Central (BC), o
fantasma do rompimento unilateral de contratos teria colocado por terra anos de
desenvolvimento institucional. Todo esse debate no Brasil foi perigosamente
impulsionado pelos acontecimentos nos EUA.
A despeito de os veículos de securitização de créditos duvidosos terem sido os
principais instrumentos de disseminação da crise, um tipo especial de
derivativos, os de crédito, foram largamente utilizados como suporte dessas
operações. Impactados pela crise, eminentes políticos americanos iniciaram uma
cruzada de demonização dos derivativos de balcão, não negociados em bolsa. Na
verdade uma simplificação do problema, uma vez que os derivativos de crédito
constituíam apenas uma parte menor do total do valor dos derivativos de balcão
no mundo à época. (Volume total de derivativos de balcão em julho de 2008: US$
684 trilhões em comparação com algo em torno de US$ 57 trilhões de "credit
defaul swap").
Ocorre que na Europa e Estados Unidos, diferentemente do Brasil, os derivativos
de balcão são contratos bilaterais, sem nenhum tipo de registro centralizado e
em muitos casos não se subordinavam a nenhum tipo de regulação.
Dois anos depois, para decepção daqueles que previam o caos, o sistema
financeiro brasileiro está bem. A exigência de registro de todas as operações
entre bancos e seus clientes em ambiente autorizado pelo BC, BM&FBovespa e
Cetip, provou-se extremamente benéfica, trazendo alto grau de transparência e
sobretudo resiliência ao sistema como um todo. Vale mencionar que a primeira
resolução exigindo o registro data de 1994, portanto muito a frente do mercado
internacional.
Ainda assim o mercado não parou. Buscando diminuir as brechas existentes nos
derivativos diretamente contratados no exterior, O Banco Central produziu três
normas importantes em tempo mínimo - Circular 3.474 e as Resoluções 3.824 e
3.833. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou a Instrução 475
aprimorando a apresentação de informações sobre instrumentos financeiros por
parte das empresas. E, no âmbito da Febraban, um grupo de profissionais, entre
os quais me incluo, conceberam e implementaram a Central de Exposição de
Derivativos (CED), algo ainda hoje impensável nos Estado Unidos e Europa.
Nos Estados Unidos, onde desde a crise a tendência é de forçar a migração de
todos derivativos de balcão para o ambiente de bolsa, o presidente Obama só
conseguiu aprovar a proposta de reforma do sistema financeiro - Dodd-Frank Act
- no último 21 de Julho. O documento preconiza a migração dos derivativos de
balcão para o ambiente de bolsas bem como a separação nos bancos de algumas
atividades relacionadas com derivativos em empresas afiliadas.
Tal regulação deve ser detalhada até julho de 2011, mas antigas questões
permanecem em aberto, tais como que tipo de derivativo pode ser considerado
padronizado e, portanto passível de migrar para ambiente de contraparte
central? Como deverão ser as plataformas de negociação eletrônicas de
derivativos não padronizados? O que caracteriza um swap-dealer e quanto
capital será requerido?, para citar apenas algumas questões que têm tirado o
sono dos legisladores nos últimos dois anos.
Na Europa, por sua vez, um grupo de multinacionais alertou a Comissão Europeia
quanto aos riscos da padronização dos derivativos de balcão e da exigência de
sua negociação via centrais contrapartes. Além da falta de customização
necessária em operações complexas, a gestão de caixa das empresas seria
comprometida pela necessidade dos ajustes e margens diárias inerentes a uma
operação de uma entidade de contraparte central. No extremo, o comprometimento
do capital de giro pode prejudicar a própria capacidade de investimento
produtivo das empresas.
De qualquer forma, enquanto os números voltam a crescer - o valor de
derivativos de balcão no mundo alcançou o patamar pré-crise em julho de 2009,
com US$ 614 trilhões - ficamos cada vez mais distantes de uma regulação
global, capaz de evitar arbitragens regulatórias e aumentar a transparência dos
mercados.
No Brasil, temos que evoluir, principalmente no que diz respeito à capacitação
dos profissionais em empresas não financeiras e aprimoramento dos processos de
governança corporativa, mas não podemos deixar de mencionar o elevado grau de
maturidade dos agentes participantes do mercado financeiro, que em meio a mais
severa crise dos últimos 50 anos, foram capazes de engendrar soluções tão
inovadoras como a Central de Exposição de Derivativos.
Jorge Sant'Anna é "head" de reengenharia do Citi e ex-diretor superintendente
da Cetip.
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