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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Os subterrâneos da guerra de moedas*

Os subterrâneos da guerra de moedas*
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo

Atribulado pela memória das desordens monetárias e cambiais dos anos 20 e 30 do
século passado, Keynes, delegado da Inglaterra em Bretton Woods, propôs a
Clearing Union, uma espécie de Banco Central dos bancos centrais. A Clearing
Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, destinada exclusivamente a
liquidar posições entre os bancos centrais. Os negócios privados seriam
realizados nas moedas nacionais que, por sua vez, estariam referidas ao bancor
mediante um sistema de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis. Os déficits e
superávits dos países corresponderiam a reduções ou aumentos das contas dos
bancos centrais nacionais (em bancor) junto à Clearing Union.
O plano apresentado por Keynes buscava uma distribuição mais equitativa do
ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários e
superavitários. Isto significava, na verdade - dentro das condicionalidades
estabelecidas - facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os
países superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos
deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno emprego. Ele
imaginava, ademais, que o controle de capitais deveria ser "uma característica
permanente da nova ordem econômica mundial".
Mas a utopia da "moeda supranacional" foi derrotada pelo arranjo internacional
proposto pelo Estado americano, então superavitário e detentor de mais de 60%
das reservas-ouro. Tratava-se, como é óbvio, de preservar o privilégio da
seignoriage. Assim, a supremacia do dólar, já no imediato pós-guerra,
impulsionou a transnacionalização da grande empresa, a ampliação e a
reorientação dos fluxos de comércio, ao promover o investimento "cruzado"
entre os mercados dos países industrializados e suscitar a redistribuição
geográfica da produção manufatureira para a periferia.
A "metástase" do sistema industrial dos países desenvolvidos, particularmente
do americano, foi revigorada pela onda da liberalização financeira e comercial
deflagrada nos anos 80 e ganhou força redobrada na década dos 90. Desde então,
o investimento manufatureiro concentrou-se na China e na Ásia emergente. A
"competitividade" chinesa tornou-se um tormento para os rivais, tanto nos
setores menos qualificados tecnologicamente, quanto, em ritmo acelerado, nas
áreas de tecnologia mais sofisticada. O país tornou-se grande receptor do
investimento direto americano, europeu e japonês e, ao mesmo tempo, ganhou
participação crescente no mercado de bens finais, peças e componentes dos
Estados Unidos e Europa.
Os "desequilíbrios" estão no DNA do exuberante movimento de expansão do
capitalismo do final do século XX e início do XXI
A redistribuição espacial da indústria manufatureira ampliou os desequilíbrios
nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como favoreceu
o avanço da chamada globalização financeira. Os EUA foram capazes de atrair
capitais para cobrir os déficits em conta corrente e, assim, mantiveram taxas
de juros baixas, dólar valorizado, importações baratas e calmaria
inflacionária. A ampliação dos déficits em conta corrente dos EUA teve como
contrapartida a rápida acumulação de reservas nos países emergentes - nos
manufatureiros e nos exportadores de commodities, aí incluídos os petroleiros.
Utilizadas na compra de ativos americanos, as reservas dos "poupadores"
ensejaram a espantosa expansão do crédito, fomentaram a inflação de ativos e
estimularam o consumo das famílias. A virtude da temperança incitou os
destemperos da finança que levaram à crise.
Quando eclodiu a crise financeira, os analistas passaram a buscar os
"culpados" pelo desastre. Os partidários dos desajustes entre poupança e
investimento repartem a responsabilidade pelos desequilíbrios globais entre
dois vícios simétricos: os americanos poupam menos do que investem; os
superavitários (sobretudo, os asiáticos - não só a China, mas também o Japão e
outros menos votados) investem menos do que poupam. Os que acusam os
superavitários de manipular a taxa de câmbio sublinham a importância das
estratégias de crescimento dos parceiros emergentes, impulsionadas pela
expansão das exportações, ancoradas nas moedas subvalorizadas.
Essa busca de "individualização" de responsabilidades obscurece o mais
importante: o caráter "fundamental", constitutivo, dos ditos desequilíbrios
globais (bem como dos "excessos" da finança) na determinação das "leis" que
regeram o modo de crescimento da economia global nas últimas décadas.
Não é demasiado repetir que, nos últimos 30 anos, ocorreram profundas
transformações na morfologia e na dinâmica da economia mundial. Ganharam força
três movimentos simultâneos: 1) o avanço da internacionalização financeira
escorada na desregulamentação e na abertura das contas de capital urbi et orbi;
2) a aceleração da reestruturação produtiva, mediante as fusões e aquisições e
o direcionamento dos fluxos de investimento direto para as regiões de menor
custo; 3) as mudanças importantes, daí decorrentes, na divisão internacional do
trabalho e nos padrões de comércio.
As transformações financeiras foram acompanhadas, como é sabido, de mudanças na
estratégia global da concorrência entre as empresas dominantes, com implicações
sobre a natureza e a direção do investimento direto estrangeiro e do progresso
técnico. Não se trata apenas de reafirmar a importância crescente do comércio
intrafirmas, mas de destacar o papel decisivo do "global sourcing", fenômeno
que está presente, sobretudo, nas estratégias de deslocalização e de
investimento que alentaram a competitividade da grande empresa e, de quebra,
ensejaram o crescimento exuberante das economias asiáticas, a China em
particular. Os "desequilíbrios" estão no DNA do exuberante movimento de
expansão do capitalismo do final do século XX e da primeira década do Terceiro
Milênio. Dificilmente serão revertidos mediante um realinhamento entre o
yuan, o dólar e o euro.

*Neste artigo o autor resumiu e atualizou textos publicados no seu livro "Os
antecedentes da Tormenta".
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do
Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

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