Qual a origem da crise na zona do euro?
A crise na zona do euro tem sido amplamente tratada pela imprensa como uma crise fiscal, que levou países como Grécia, Irlanda e Portugal a serem submetidos aos programas de resgate da troica para evitar a insolvência e outros, como Espanha e Itália, a pagar retornos elevadíssimos aos investidores para financiar a dívida, além de recorrer à ajuda para recapitalização do sistema financeiro.Chama atenção, todavia, que a situação fiscal dos países do sul da Europa - os mais afetados pela crise - era bastante controlada até 2008, quando explodiu a crise americana. A reversão desse controle evidencia outro desequilíbrio, o do balanço de pagamentos.Sabidamente, o norte europeu - especialmente a Alemanha - sempre exibiu grandes superávits em conta corrente, ao contrário do sul. Considerando que o câmbio é o mesmo na zona do euro, mas que há diferenças de competitividade (custos de trabalho, produtividade), o efeito é de um euro "forte" no norte e "fraco" no sul, para onde migraram os fluxos. Somados à enorme liquidez internacional, tais fluxos foram utilizados para financiar o consumo interno e um boom imobiliário, ao invés de investimentos produtivos, causando desequilíbrios nas contas correntes e nos fluxos de capitais, o que depois culminou na desordem fiscal.Então, a origem da crise é fiscal ou de balanços de pagamentos?O Valor fez essa pergunta a cinco especialistas europeus, sendo dois economistas de mercado financeiro (UBS e BNP Paribas, ambos em Londres) e três acadêmicos (IMD Business School, na Suíça; IESE, na Espanha; e London School of Economics, na Inglaterra). De maneira geral, todos os entrevistados veem os dois fatores como explicativos da crise, com mais ou menos peso para cada um, com simultaneidade ou não de ocorrência. Como ponto comum, admitem que a falta de uma união fiscal e bancária torna a união monetária incompleta e vulnerável.Abaixo as posições de cada um dos analistas ouvidos pelo Valor:Paul Donovan, economista global do UBS Investment Bank "Acreditamos que a origem da crise da zona do euro reside no fato de que o euro não funciona como uma união monetária. Isso significa que essa é, simultaneamente, uma crise fiscal e uma crise de balanço de pagamentos. A natureza inapropriada da política monetária comum e a ausência de uma política fiscal comum forçaram os governos individuais a fazer políticas fiscais anticíclicas por períodos longos para compensar os estragos de uma união monetária erroneamente criada. De modo similar, a natureza da política monetária permitiu que muitas economias mantivessem déficits em conta corrente maiores que os devidos por longos períodos. A ausência de uma união bancária apropriada na zona do euro levou esses déficits a serem financiados desproporcionalmente por fluxos de capitais internacionais voláteis, os quais secaram logo após a crise de 2008."Ricardo Santos, economista do BNP Paribas para a Europa"Essa é uma crise de balanço de pagamentos que obviamente tem duas ramificações, o setor privado e o setor público, sendo o ramo fiscal o que mais se destacou nos últimos anos - principalmente na Grécia e em Portugal. Na Irlanda e na Espanha, a crise é mais de balanço de pagamentos. Os governos desses países estão em piores condições porque tiveram que ajudar seus respectivos sistemas financeiros durante a crise de 2008. Na Grécia e em Portugal, a crise é quase 100% um problema simultaneamente fiscal e de balanço de pagamentos. Vemos que não se trata apenas do comportamento das contas correntes, mas também do comportamento do crédito, que subiu muito mais na Irlanda e na Espanha, levando a um aumento no preço dos ativos, como o preço das casas, e fez com que os países tivessem que intervir para ajudar seus bancos. Quando observamos a evolução da crise da zona do euro, vemos que todos os países que agora estão com dificuldades são justamente aqueles com os maiores déficits em conta corrente como porcentagem do PIB. Portugal e Grécia têm problemas fiscais, mas não podemos esquecer que há um país com problemas acima de tudo fiscais e grandes questões em termos de conta corrente, que é a Itália."José Manuel González-Páramo, professor de economia do IESE (Universidade de Navarra) e ex-membro do BCE"O melhor predecessor para a crise em alguns países europeus é a posição líquida internacional. Aqueles países com maior investimento líquido negativo acumulado são, precisamente, os que estão sofrendo mais atualmente. Em diversos casos, a persistente necessidade de incentivar os mercados internacionais deveu-se essencialmente a uma enorme expansão do endividamento privado, frente a uma economia superaquecida vivenciando perdas de competitividade. Esses são os casos da Espanha e da Irlanda, países nos quais as contas do setor público estavam balanceadas e os níveis da dívida do setor público eram relativamente baixos. Em outros, como na Grécia, os desequilíbrios do setor público agravaram o problema. Em contraste, países com déficits ou dívidas públicas relativamente altos nos anos antecedentes à crise americana de 2008 estão atravessando a crise, de certa forma, bem. Com a ausência de mecanismos de absorção de choques - como um orçamento federal ao nível da União Europeia, mecanismos de seguridade financeira e flexibilidade nominal na taxa de câmbio -, os países que têm grande necessidade de refinanciamento estão sofrendo com a saída repentina dos investidores."Charles Goodhart, professor da London School of Economics e ex-membro do Banco da Inglaterra (BoE)"O que estava acontecendo é que países como a Irlanda e a Espanha e, em menor grau, Portugal, estavam mantendo déficits em conta corrente muito altos. Os resultados deficitários foram causados pelo enfraquecimento dos fluxos de capitais, os quais haviam sido afetados pelo boom financeiro e de investimentos - primeiro pelo boom de investimentos no setor imobiliário. Isso significa que as dívidas do setor privado da Irlanda e da Espanha estavam aumentando rapidamente, em particular o endividamento dos bancos. Depois, ficou óbvio que o setor imobiliário estava passando por dificuldades e houve contaminação através da percepção do que estava ocorrendo nos EUA. Os fluxos de capitais dos bancos simplesmente secaram e houve uma queda brusca no investimento, no preço dos imóveis, na riqueza desses países e no consumo. Esses fluxos de capitais foram substituídos por arranjos de transferências bancárias Tier 2 no continente, promovidos pelo BCE. O problema, contudo, era reestabelecer a competitividade que se perdeu durante o boom dos investimentos e, ao mesmo tempo, o equilíbrio nas contas correntes, evitando um déficit ou até mesmo perseguindo um superávit. A crise da zona do euro se tornou uma crise fiscal porque o endividamento dos bancos nesses países se tornou tão severo que o setor público foi obrigado a recapitalizar os bancos, enfraquecendo a posição fiscal dos governos a tal ponto que o desequilíbrio na conta corrente virou uma crise bancária, fiscal e de balanço de pagamentos."Salvatore Cantale, professor de finanças do IMD Business School"Acredito que a atual crise europeia não pode ser atribuída a apenas uma causa. As duas explicações levantadas - a imprudência fiscal e a crise de balanço de pagamentos - estão corretas, mas elas dificilmente são a causa do problema do euro. A segunda explicação, sobre o balanço de pagamentos, fez com que o problema fosse notado mais cedo, e a primeira, a imprudência fiscal, é apenas a ponta do iceberg. O real problema do euro é o euro. A falsa sensação de segurança de que 'estar em um navio grande reduz o risco de naufrágio' deu aos governos e cidadãos na zona do euro a possibilidade de financiar atividades populistas em vez da criação de valor [gastos correntes x investimentos]. Uma vez que as economias europeias não precisavam mais lidar com a desvalorização da moeda, porque estavam dentro do euro, o monitoramento contínuo do mercado de câmbio deixou de ser possível."
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