Os bons (bons?) números do Brasil
Há dias o Ministério do Trabalho divulgou que, em 2010 a criação de empregos
formais no Brasil foi de 2,86 milhões postos de trabalho, um crescimento de
6,94% na oferta de vagas com carteira assinada. É um recorde de toda a série
histórica da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), que começou em 1975.
A esse recorde, o país tem somado outros, como os 19,5 milhões de brasileiros
que, entre 2003 e 2008, deixaram, estatisticamente, de ser pobres, e os 31,9
milhões que ascenderam às classes A, B e C.
Com toda a razão, os últimos anos foram marcados por um amplo debate sobre a
queda da desigualdade no Brasil. Basta uma ligeira retrospectiva para confirmar
que os institutos de pesquisas e algumas das mais conceituadas universidades
brasileiras empenharam-se em produzir dezenas de trabalhos que comprovam e
explicam as razões da redução da pobreza no país.
Como estímulo adicional para esses trabalhos, há o fato inédito de que os
brasileiros tinham, na presidência da República, um ex-metalúrgico,
autoproclamado da "esquerda moderada". O mesmo que, em 2002, ainda na disputa
pelo primeiro mandato, despertou os piores temores das alas mais conservadoras
da sociedade - entre eles, descontinuar as políticas econômicas de FHC,
aumentar os gastos sociais, suspender o pagamento da dívida pública e quebrar
contratos, de maneira geral.
Pois bem: o índice de pobreza no país caiu 50,64% durante os dois mandatos do
ex-presidente Lula, contra 31,9% entre 1995 e 2002, na gestão FHC. Em 2010, o
índice de Gini, que mede a desigualdade social, foi de 0,5304 no Brasil, o
menor desde 1960. Antes, o índice de 0,6 nos garantia o triste título de país
mais desigual da América Latina (piores, apenas alguns países africanos).
O deslocamento para classes de renda mais alta resulta do investimento da
população em educação
A grande notícia é que a redução da desigualdade, associada à retomada do
crescimento econômico, com queda do nível de desemprego, mostram um novo
Brasil, que nunca teve indicadores tão positivos de renda, trabalho e emprego
formal. De janeiro a abril deste ano, foram geradas 880 mil vagas, e as
projeções do Ministério do Trabalho indicam que, até o final do ano, as
contratações formais chegarão a 3 milhões.
Outros números recém-divulgados, como os do Censo 2010 e a pesquisa
Desigualdade de Renda da Década, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), fazem
justiça aos progressos do país e mostram que está em andamento um processo
sustentável, que empurra os brasileiros de baixo para cima na base da pirâmide
social.
Entre 2001 e 2009, segundo a FGV, a renda dos mais pobres cresceu 311% na
comparação com a dos mais ricos. A educação foi o fator que mais contribuiu
para esse aumento de renda, seguida, em menor parte, pelos programas sociais,
como o Bolsa Família, que atinge hoje 25% da população, com investimento de
apenas 0,4% do PIB brasileiro. Em outras palavras, o deslocamento dos
brasileiros para classes de renda mais alta resulta, essencialmente, do
investimento da população em educação e da conquista de emprego com carteira
assinada.
É certo que a redução da desigualdade vem ocorrendo de maneira linear na
distribuição de renda, em um ritmo que os pesquisadores consideram alto para os
padrões históricos, pois é igual ou melhor que o dos países desenvolvidos. Nos
últimos anos, quanto maior a renda da população, menor o crescimento do poder
aquisitivo: os 10% mais ricos tiveram um crescimento em torno de 1% ao ano,
enquanto os 10% mais pobres entre 7 e 8% ao ano.
Impossível negar, também, que a ascensão da chamada nova classe C, cerca de 35
milhões de pessoas, com renda familiar entre três e 10 salários mínimos, é um
dos fenômenos sociais e econômicos mais importantes da história brasileira
recente. (Vale lembrar que um estudo do Instituto Data Popular, divulgado em
meados de maio, a partir de dados do IBGE, revela que conquistar essa nova
classe C será questão de sobrevivência para os políticos brasileiros: em 2014,
ela vai englobar 57% dos eleitores, contra 41%, em 2002.)
É preciso, entretanto, não perder de vista uma questão fundamental: os números
que retratam o Brasil, neste início de século, são, realmente, muito bons e
representam um enorme avanço para um país com um histórico chocante de
desigualdade social. Mas estão longe de admitir o tom triunfalista, que já
permeia alguns discursos políticos. Há lugar para muito otimismo, não para
ufanismo.
O que não se pode esconder é que o Brasil tem um atraso entre 50 e 100 anos em
relação ao tempo que outros países levaram para construir sociedades com alto
nível de igualdade. O que não se pode esconder é que o país, ainda, é
absurdamente desigual.
Queiramos ou não, ainda temos, de um lado, o Brasil que deu certo, da população
a quem o dinheiro permite acesso à educação, moradia, lazer, saúde,
alimentação. É também o Brasil dos executivos que viajam na segunda maior frota
de jatos particulares do mundo e o Brasil das grandes grifes planetárias do
mercado de luxo, concentradas na cidade de São Paulo, como Marc Jacobs, Chanel,
Louboutin, Hermès, Louis Vuitton e Emilio Pucci, entre muitas outras.
De outro lado, há o país dos miseráveis, dos que apenas sobrevivem, sem acesso
ao mercado de trabalho, à educação, saúde, habitação, terra - gente privada dos
direitos mais elementares da cidadania e da dignidade humana. São, pelo menos,
16,3 milhões de brasileiros, ou 8,5% da população, com renda mensal de até R$
70 por pessoa da família - os mesmos que a presidente Dilma Rousseff promete
beneficiar com o plano "Brasil sem Miséria", anunciado no início de maio.
Em sociedades democráticas, que vivem há décadas sob o estado de direito, as
mudanças, em geral, ocorrem lentamente: cálculos de nossos pesquisadores
mostram que, mantendo-se o ritmo atual de redução do índice de Gini, o Brasil
terá uma sociedade igualitária em cerca de 30 anos. Há, portanto, uma longa
caminhada pela frente, que obrigará nossos governantes a apostar no ciclo
virtuoso do bom capitalismo.
Trata-se, em resumo, de encarar o desafio de manter a queda da desigualdade por
duas ou três décadas, com o agravante de que algumas das atuais políticas de
distribuição de renda têm limites naturais. Para essa trajetória rumo à
igualdade, será fundamental investir em educação, mudar a política tributária,
melhorar o sistema de transferência de renda, realizar obras de saneamento
básico.
O Brasil precisa encontrar uma nova síntese entre economia e política, que
combine estabilidade econômica, inflação baixa e crescimento, com fortes
políticas sociais dirigidas para a população mais pobre. Daí, sim, será
possível comemorar, com ufanismo justificado, uma situação de equilíbrio social
e econômico pela primeira vez em mais de 500 anos de história.
Miguel Jorge, jornalista, é ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior (2007/2010).
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