Incompetência monetária
Trata-se de aproveitar a crise dos parceiros desenvolvidos para criar um
ambiente de maturidade econômica
Poucas vezes na história econômica, uma única medida monetária teve um objetivo
tão errado e um efeito tão adverso quanto a decisão do Federal Reserve (Fed,
banco central americano) de injetar liquidez da ordem de US$ 600 bilhões por
meio de operação de recompra de papéis do próprio Tesouro dos EUA.
Qualquer que seja o ângulo pelo qual se analise a decisão, nenhum ajuda a
redimir o Fed da incompetência monetária.
Primeiro: falha no objetivo a que se propôs de estimular a economia interna com
a farta distribuição de liquidez. O motivo da inoperância da medida tem a ver
com a racionalidade dos americanos que, diante de taxas de desemprego ainda
muito elevadas e sem a perspectiva de que dias melhores virão no curto e médio
prazos, têm se esquivado de tomar empréstimo. Os bancos, por seu lado,
temerosos de micarem com credores inadimplentes, preferem manter o dinheiro em
caixa. A economia, no geral, não se move e o dinheiro tende a circular menos.
Não é algo que possa ser resolvido com liquidez. Há um forte elemento
psicológico envolvido no cenário da recessão dos Estados Unidos. Afinal, de que
serve ter dólares se não há confiança nem mesmo daqueles que têm emprego quanto
ao futuro da sua renda?
O gráfico abaixo, elaborado pela Consultoria Tendências, mostra bem a nulidade
daquela medida de expansão monetária. Os dados são do próprio Fed e mostram a
evolução do multiplicador monetário nos Estados Unidos. Desde setembro do ano
passado, o indicador tem se mantido abaixo de um, considerando a razão entre o
M1 (meios de pagamento no conceito mais simples) e a base monetária, que é a
emissão primária de moeda. Significa que o sistema bancário não tem sido capaz
de girar os dólares em ritmo suficiente para colocar a economia em andamento.
Segundo, o dólar é a moeda mais conversível do mundo. Isso dá ao seu emissor um
enorme poder de influência nos mercados de moedas em geral. Ao injetar soma
altíssima de moeda no circuito bancário dos Estados Unidos, e em não havendo
demanda interna para tanto dinheiro, os dólares acabam tomando outras direções.
Vão ajudar a irrigar outras economias que, a rigor, não precisam de mais
liquidez.
Terceiro, todo o movimento do dólar a partir da decisão do Fed tem o efeito de
contribuir para as chamadas operações de "carry-over", estimuladas pelos ganhos
pelo diferencial de taxas de juros entre os Estados Unidos e os países em
desenvolvimento que não conseguiram até aqui se desvincularem da rigidez
monetária do passado, contribuindo assim para alimentar os problemas criados
com o excesso de dólares no mercado.
Enquanto isso, os bancos europeus (em especial os alemães e belgas, mais
carregados de ativos duvidosos) se afundam com as perspectivas de insolvência
da dívida soberana de países como a Irlanda, Espanha, Portugal e etc..., a
ponto das pessoas começarem a colocar em dúvida o futuro do euro. É mais um
petardo complicado de mastigar no cenário global que não mostra sinais
positivos no horizonte.
Isso sem falar na China, que começa a se preocupar com os efeitos da crise e
que não pode de jeito nenhum passar por uma recessão do tipo da que assola os
Estados Unidos. Lá, ainda há milhões de bocas para serem alimentadas, de um
lado, e uma classe média que se acostumou com um padrão de vida elevado.
Politicamente, para o partido comunista chinês, seria uma situação difícil de
gerenciar. O sudeste asiático se mantém à mercê dos ventos que sopram na China;
e, no Japão, a economia continua sem ir para frente e nem para trás.
Na América Latina, tudo parece andar dentro do esperado na medida daquilo que
pode ser esperado, tendo em vista as circunstâncias.
O Brasil aflora na região como se fosse o verdadeiro pedaço do paraíso na
terra, mas tende a não ficar imune aos efeitos da crise internacional. Como já
se disse aqui, não há nenhum motivo no momento para maiores preocupações com o
déficit em conta corrente do país, mas há sim com os efeitos que a enxurrada de
dólares promovida pelo Fed poderá ter sobre a economia do país.
Não se trata apenas da valorização do real. O que está em jogo, em meio à
confusão generalizada, é a capacidade do próximo governo em desenvolver uma
política econômica que possa manter a estabilidade da inflação independente da
política cambial e praticar juros que realmente tenham a ver com o valor
aquisitivo da moeda nacional e não com a preocupação de atrair capital
externo. Enfim, trata-se de aproveitar a crise dos parceiros desenvolvidos para
criar um ambiente de maturidade econômica interna, enquanto há tempo.
Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin - Comunicação
Inteligente e autora do livro "A Real História do Real".
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